segunda-feira, 19 de maio de 2008

Gisselle Ribeiro, poète avec délicatesse

> palais du versailles, paris, by paulo vieira


O PRIMEIRO EXERCICIO DA DELICADEZA


Entre tantas coisas que perdemos, uma, agora, com 40 anos, chama-me mais atenção: a perda da delicadeza. E perceber o quanto a maquinaria da vida moderna nos rouba os sentidos, e resgatar essa perda, transformando-a em ganho, novamente, tem sido o meu grande desafio.
A escalada para os 40 anos teve frentes frias e suas canículas...
Aos 36 anos, com a teoria de Pierre Weil, descobri a visão holística, ou seja, a tomada de consciência de si, do outro e do mundo. E descobri que esse era o nome dado para a prática de olhares que os artistas se permitem exercer. Por conta dessa visão, holística, as dores do mundo entram mais profundamente neles conduzindo-os a criação dos documentos histórico-literários, de linguagem peculiar.
No artista, mais precisamente, a prática da visão holística parece estar em alerta todas as horas do dia ou noite. Por isso, talvez, eu não consiga dirigir um veículo, sou sempre passageira. Sou sempre passageira de algum trem, ônibus, avião, barco. Assim, eu permaneço... E das janelas, ou no interior dos veículos, eu vejo os gestos dos humanos e as respostas do mundo: Na Avenida Bernardo Sayão, vejo operárias de uma fábrica de castanhas que todas as manhãs, bem cedo, antes de começar a jornada fazem ginástica, todas de farda azul celeste, avental e chapeuzinho em suas cabeças, já despertas para mais uma luta contra a rotina doméstica. Nelas, através da janela aberta, sinto o cheiro de mudança em nosso histórico.
Meu olhar alcança uma mulher com ama grande sombrinha que avança pelos corredores do ônibus encostando o objeto nas cabeças dos que estão já sentados. Nela, não há qualquer vestígio ou dose de preocupação com o bem-estar do outro.
Há também mulheres grávidas, senhoras e senhores que permanecem em pé nos corredores dos ônibus, enquanto os jovens, no percurso escola-casa, vestidos de pequenos deuses, confortavelmente instalados nas poltronas, brincam de jogar latas de refrigerante, garrafas de água e outros entulhos para fora do veículo, tentando alcançar os passantes das ruas por onde o ônibus circula. E um sopro de Drummond toma conta da minha cabeça:
“Chega um tempo em que não se diz mais : meu Deus. / Tempo de absoluta depuração. / Tempo em que não se diz mais: meu amor. / Porque o amor resultou inútil. E os olhos não choram. / E as mãos tecem apenas o rude trabalho. / E o coração está seco (...)”.
Meu coração se inquieta, não quero tecer, apenas, o rude trabalho, tampouco me manter sem a ressonância do amor, sem a alegria do enternecimento na vida de algumas pessoas, as pessoas que amo, nelas eu quero manter, ainda que soframos longas invernadas e verões intensos, ainda assim, quero manter, entre nós, o exercício da delicadeza. Poder dizer “bom-dia”, “obrigada”, “por favor”, com toda a verdade da expressão dita. Poder conversar com elas com respeito mútuo em um diálogo não só com palavras, mas com toques, olhares e breves silêncios. Assim tenho aprendido, pelo encantamento, com Izabel Soares e Sâmia Rodrigues.
Ainda com 36 anos, na pós-graduação, descobri que não bastava ter consciência dos acontecimentos daninhos para nós humanos ou para o mundo. Era preciso ir um pouco mais além, era preciso acordar a nossa sensibilidade encarcerada pela revolução industrial. Era preciso eclodir a doçura dos nossos dias, para não tecermos apenas o rude trabalho. E, com 40 anos, enquanto educadora, tenho longos braços para acolher os aprendizes que se dispõem à retomada da sensibilidade, contudo, tenho, também, mãos firmes para alcançar os que tomam a direção contrária.
O fôlego, a energia recomposta no plano profissional foram marcados em mim por Ludetana Araújo, com os recursos de artesã, refazendo o sol em cada fresta do momento mágico de ensino-aprendizagem.
Dois homens distintos, Benoni e Paulo Vieira, me indicam o bom caminho para a travessia dos obstáculos, apontando um farol: a literatura. Eles não sabem, com eles percebi que é possível respirar e transpirar poesia. Benoni, burocrata, contador na luz do dia, mas entre uma sombra e outra, faz a sua aposta em um raro poema. Paulo Vieira, de dia engenheiro florestal, e, entre uma árvore e outra, preserva as espécies de poemas quase extintos. Eis dois homens distintos fazendo gerar energia literária em mim. Sem a menor consciência da profundidade dos seus atos poéticos.
É possível crer em pouquíssimas coisas em tempos modernos. É possível deixar para trás atitudes nobres em nome do lucro, da força das máquinas, da bolsa de valores e de muitos outros metais brutos, no entanto, ainda que eu não caiba nos novos valores, a voz de Freud me conforta: “Seja qual for o caminho que eu escolher,um poeta já passou por ele antes de mim” ou ainda lembrando Nietzsche “A arte assume acessoriamente a tarefa de conservar o ser, até mesmo de dar um pouco de cor a representações extintas e empalidecidas, quando cumpre essa tarefa, tece um laço em volta de diferentes séculos e faz reaparecer os espíritos [...], mas pelo menos por instantes desperta mais uma vez o velho sentimento e o coração bate a uma cadência de outro modo esquecida.”
Por isso, não imagino a existência de uma porta que a literatura não possa bater, não imagino a existência de uma mesa que não possa servir literatura aos que dela têm fome. Não imagino a existência de um só jardim onde a literatura não possa germinar.
Imagino sim, que ainda há emoção para sentir e ouvido para ouvir o enorme ruído da literatura mudando o homem.
Eis o meu primeiro exercício da delicadeza: “Nenhum homem é uma ilha em si mesmo, todos os homens são um pedaço do Continente, uma parte do Todo; pois se uma parcela de terreno é arrebatada pelo mar, a Europa é lesada; mesmo que se tratasse de uma Morada de teus amigos ou do teu próprio eu... a morte de todo homem me diminui porque faço parte do Gênero Humano. Portanto, não perguntes jamais por quem os sinos dobram. Eles dobram por ti.”



texto de giselle ribeiro, 2007

3 comentários:

Anônimo disse...

ouves amigo, são os sinos, dobram desdobram, lindo texto, bjs aos dois poetas.
Dani Fonseca

Anônimo disse...

oi dani,

saudades, palmas pra ela, que ela merece. bom te ver por aqui.

gros bisous,

p

Antonio Juraci Siqueira disse...

Há hora que o homem deve
estar só com seus consigos;
outras vezes quer chamego,
ombros, mãos, braços, umbigos...
Deve, pois, ser uma ilha
cercada de mil amigos!

Salve Gisele, salve Paulo,salve Bennoni e todos os que utilizam a palavra como instrumento de formação e transformação do homem.