sábado, 27 de setembro de 2014

sobre OVO DE OSGA, de AILSON BRAGA

                                                              

                      Ovo

Enquanto lia os contos deste Ovo de osga, segundo livro de Ailson Braga, me lembrei de uma cena do livro História do olho, de Georges Bataille. Aquela na qual Simone aprende a quebrar ovos de maneira erótica, como nos conta outra personagem, o seu amigo narrador: “A partir dessa época, Simone aprendeu a quebrar ovos com o cu. Para isso colocava a cabeça no assento de uma poltrona, as costas ao espaldar, as pernas dobradas na minha direção enquanto eu batia punheta para esporrar no seu rosto. Só então eu punha o ovo em cima do buraco: ela se deliciava a mexer com ele na rachadura profunda. No momento em que as nádegas quebravam o ovo, ela gozava...” Um exemplo luminoso de como o erotismo nasce no âmago das coisas isentas de sentimentos e nas escatologias que, no fundo, representam a natureza mais pura, sem peias. Enquanto, ao contrário do que dizem os moralistas, as obsessões, realizando-se, libertam o espírito.
Contudo, as personagens de Ailson não são como as Bataille, que encontram no esfacelamento e na loucura o roteiro das suas perversões. Mas o desejo que extravasa nos contos de Ovo de osga remete também ao sentido tempestuoso e tenso da vida que não prescinde dos inesgotáveis anseios da carne. Nestes contos, as personagens procuram um lugar mais ameno na vida, ainda que, frequentemente, seja por meio da rememoração. Afinal, a felicidade não parece estar sempre no passado, ou naquilo que dele nos resta como lembrança? As personagens de Ailson querem os impossíveis que constituem uma urgente felicidade. E, às vezes, humildemente, querem menos que isso.

Mas atender a sonhos não parece a tarefa do escritor nesses contos. Como o leitor poderá ver, Ailson está absorto na construção das imagens. Por isso, nas páginas dessas histórias há uma carga poética muito sentida. Em alguns casos, o autor nos oferece versos prontos, cheios de lirismo, no meio das tramas de sua prosa, como em: “O céu denuncia um carregamento clandestino de astros”, “o mato é uma mágica anônima da natureza”, “o sol colocava amarelos e laranjas pelas paredes”, “...no coração também levava formigas de fogo por Rafael” ou ainda no bonito haicai plantado no conto que dá nome ao livro, “uma chuva de folhas – confetes da natureza – saúda a passagem de um grilo”.
Mas não pretendo revelar muito para não estragar a surpresa desses contos, onde se vê um pai se afastar do filho, ou pior, abandoná-lo num convento. Onde meninos crescem, enquanto a cidade e a ilha seguem na sua rotina de ferro ou de água, de asfalto ou de rio, indiferentes a eles. Onde Benedito e Cátia correm (para onde?) contra o tempo e a solidão dos dias.  Onde “o gosto dourado dos camapus” revela e oculta o primeiro amor. E as “formigas de fogo” e as “folhas serenadas” atendem aos apelos do corpo sem que ninguém se dê conta da morte nem daquilo que os cristãos chamam pecado.
É assim que, nos contos deste Ovo de osga, Ailson Braga se entrega às obsessões da sua própria existência procurando entendê-las e também vivê-las ou revivê-las. Mas isso se dá de maneira paradoxal, pois ainda que um escritor pense basear-se no vivido a literatura faz outra coisa: transfigura o realizado e o irrealizado em algo intangível e premente, mas que, na leitura, se revela como se sempre estivesse ali, feito um “ovo de osga escondido atrás de um calendário pendurado na parede”.

Paulo Vieira,
Piracicaba, setembro, 2014.