quarta-feira, 27 de janeiro de 2021

LIVRO - "Invisíveis cotidianos" de Carlos Orfeu

Já estava passando da hora de eu comentar os livros que recebi de poetas brasileiros no último ano. Começo com o livro de Carlos Orfeu, Invisíveis cotidianos (Patuá, 2020). 

Carlos é um poeta carioca que, trazendo no nome a música do encantador de todas as coisas, Orfeu, mostra na sua poesia não menor encanto. São lances de um surrealismo encorpado e jogadas certeiras e econômicas de palavras sempre arquitetadas ou tramadas de modo admirável. Poesia de síntese, a dele. Nela o cotidiano se apaga mas continua ali, vivo, pulsando "atrás das roupas / inquietas no varal", no "incógnito céu", na "cadeira / abraço de madeira", que "sem saber estala". Carlos é um "acrobata dos desastres" e nesse livro, que merece ser lido e relido, como tenho feito agora, nos mostra a força incontida do cotidiano sempre materializado no irascível presente, mas, nem sempre, visível. Dentre tantas tarefas, cabe ao poeta essa também: nos mostrar o que experimenta o dia, seus cotidianos, em versos. 

segunda-feira, 25 de janeiro de 2021

SOBRE O MONSTRO E A PESTE

     

                                                                                                                                                                     

Em 2016, recém-chegado a Altamira para o trabalho de professor de literatura para jovens que vivem nos rios e nas florestas da região, deparei com a Usina que eu apenas conhecia pelas denúncias, sempre muito bem embasadas, no Jornal Pessoal do meu amigo Lúcio Flávio Pinto. Escrevi o poema “no dia que vi o monstro” de chofre quando vi, naquela manhã chuvosa, a barragem, primeiro pela janela do carro e depois pelo retrovisor. Mas o poema ainda não me contentava, lutei com ele a luta vã, como queria Drummond, e nada. Os anos se passaram e abandonei a luta, derrotado. Quando a peste chegou a Altamira, em março de 2020, pude me trancafiar em casa, e aqui vivi uma outra face da doença, aquela de quem não se contamina com o vírus mas vai definhando um pouco a cada dia ao ver pelas telas o país morrer física e simbolicamente. Escrever poesia vai por um caminho tortuoso, nada que se consiga explicar com retórica. E não existe solução fácil, nem hora perfeita. Assim aconteceu. Eu, ali fenecendo já há mais de meio ano, perdido em meio a tantas perdas pessoais, numa certa manhã, lembrei daquele poema de 2016, procurei e achei os versos malcriados e, finalmente, o poema se deixou reescrever.

Você pode assistir no youtube a minha leitura desse poema aqui, ó: https://www.youtube.com/watch?v=5JHIcKQq-O8&feature=youtu.be

Paulo Vieira

Rio Xingu, novembro do ano da peste.

domingo, 24 de janeiro de 2021

VOLTAMOS COM A NOSSA PROGRAMAÇÃO NEM TÃO NORMAL ASSIM: UMA AULA SOBRE A POESIA E OS DIÁRIOS DE MAX MARTINS


 "Alô, iniludível!", Volto a postar neste blog, depois de anos e anos sem aparecer. Não parei por falta de assunto, parei porque fui passear na floresta! Esta aula sobre Max M. está também disponível no meu canal no youtube "vieiranembeira", junto de outras mais de 40 aulas gravadas em 2020, todas curtas, sobre diferentes autores da literatura brasileira e internacional, confiram lá, ou aqui. Evoé!

segunda-feira, 15 de agosto de 2016

PARAGOFOREST - (um pouco do pouco que resta)

fiz todas as fotos com meu celular na primeira semana de agosto de 2016, na reserva florestal agro sete, atualmente cercada de vasta região desertifica pelo plantio de soja...


.
.


solar

poros

solar 2

solar 3

musgo no gigante

micro teia

estrada branca

labirinto

camuflagem

escada de jabuti para o céu

anciã

escada de jabuti para o horizonte

pé de uma escada de jabuti

pula corda para gigantes

observador, meu amigo sistemata

troca de pele

aracno mundo

passeio


aracno mundo 2

miguel na cabana

solar 4

aracno passagem para outra dimensão

corte seco

fundo fungo

miguel, o parabotânico 

pousaste em mim

almoço na varanda

cabana natural

SOBRE DESMATAMENTO E POESIA NA AMAZÔNIA

eu e marcos cólon, entrevistando lúcio flávio pinto na casa da linguagem, em belém, agosto, 2016

sábado, 25 de junho de 2016

UMA ENTREVISTA

foto: auto-retrato - by paulo vieira


partilho com você uma entrevista que dei pra revista literária Travessias:

Na íntegra neste link:

(sobre o que falei na entrevista?...):

"Abrimos a edição com a entrevista concedida pelo poeta Paulo Vieira à pesquisadora Cristiane Rodrigues de Souza (UFMS/Três Lagoas). Já em sua primeira publicação (2004), Vieira surge como voz poética marcante, atestada inclusive por Benedito Nunes, que o aproxima, a princípio, das experiências poéticas do primeiro tempo modernista brasileiro. O poeta fala sobre sua relação com a natureza (de todos os lugares e de lugar nenhum); a relação entre o ser-poeta, o ser-engenheiro (Vieira é formado em Engenharia Florestal e seguiu carreira acadêmica na literatura) e a música; a linguagem, a forma e a metáfora; o desejo e o sofrimento." (O Editor).

NA FEIRA PANAMAZÔNICA DO LIVRO, 2016, TEMA DA ENTREVISTA: MEU PRIMEIRO LIVRO...

eu, rosângela darwich, daniel leite e juracy siqueira,  foto da elza lima

terça-feira, 5 de abril de 2016

NOITE, NA CAMA

o romance aberto 
sobre o peito

você chega
nem quer saber
personagem narrador 
tempo linguagem

você  deita junto
se encosta
você sabe 
eu gosto

como fosse
possível 
se encostar 
ainda mais 
você cola

ri um bocado
depois se afasta
devagar

e vai fechando
delicada
o romance
com a ponta
do pé

NOTAS DO ESTUDANTE 1



olho a palavra "engrenagem" como quem olha
                                             pra uma engrenagem

sempre que estudo eu me desmantelo

pateta, fico nesse flerte com a beleza dos conceitos
me perguntando por que, logo adiante, esqueço

os conteúdos, (embora nunca os efeitos!),
de algo excitante algo doce algo elegante algo que
pronunciado com todos os ésses e érres

faz de um burrico imponente corcel


.
.


paulo vieira

terça-feira, 16 de fevereiro de 2016

GOSTO MUSICAOS

.


gosto musicaos

a música na quarta
capa do silêncio

bach é pura bossa
stravinsky é rock’n’roll

leigo
ouço
meigo
patinho que é
o som do oboé

veja
não vejo
assim tanta
diferença

no erudito o folk
                    desvelo
cordas de banjo
no violoncelo





.


paulo vieira



quinta-feira, 11 de fevereiro de 2016

POEMA EM SILÊNCIO



beiro o silêncio
enquanto o cheiro
 da morte
acende esta poeira
de sombras
que me adivinha
insone

vontade de correr
num parque
em são paulo
de comer menos
       e nunca
depois das 6

lembro de você
no dia
em que nos conhecemos
sua juventude
saltava pra me seduzir

beiro o arrependimento
mas me entretenho

tudo vale a pena
amor ódio poema

e essa inconsequência
que sempre me fode

mudo de cidade
esqueço tanta gente
especialmente
                nomes

   mas os rostos
também se apagam
porque a sombra
exige insumo

beiro a solidão
enquanto imagino
o gosto da palha
que envolvia o fumo



sexta-feira, 5 de fevereiro de 2016

MIRANDO O MAR




nunca levei a morte a sério enquanto
praticava o lento suicídio

[céu ansiolítico 
da boca
de sereias
e outros seres
antissociais]

suicidar-se devagar é vantajoso
dá pra roer o próprio osso
e se lamber feito um
cão sem patas 


mesclar tinta e sangue repensar
o verso jamais a ferida
envenenar o orvalho
arrepender-se de nada

aos bocejos de tédio
recolocar o pino
da granada

fazer roleta russa
uma vez por mês

nunca levei a morte a sério e agora
o suicídio vai
no piloto automático
mirando o mar



.

Paulo Vieira

.

FACEBOOK

      

outra vez descer pela encosta
ombro escarpado do gigante
depois do 4º ou 5º adeus
e cair num diário
sem capa nem miolo

onde mil e trezentos
ou mais cadáveres tolos
se acotovelam
entre escombros

enquanto um zumbi gargalha kkkkk
do topo da montanha
de lixo insular

chorume, emotionsurina, sangue
de um spoiler, corpinhos nus
destroçados, inexorável
felicidade nos ossos
moídos das faces
irascíveis por pouco
inconfundíveis

abarrotando a timeline da solidão

vozes vazias de mortos que,
aos berros ou sem euforia,
denunciam curtem
e compartilham
selfies, desgraças,
ódios, alegrias


.

Paulo Vieira

.

terça-feira, 2 de fevereiro de 2016

amanhecer

no quarto absorvo 
ao menos um pouco

as réstias da luz
que o dia produz

longe a noite movediça
agoniza e apaga
tudo
vermelhos
roxos
grandes lábios
e azuis

absorvo e sinto
ao menos um pouco

os desígnios da aurora
que ao pousar
nos devolve
distorcidas
luzes
cores
esmaecidas

desperto antes
da mimética manhã
luzir altiva
                       
tenho abóbadas
insônia nas salivas

mas que fazer do medo
quando os fantasmas
se aposentam?

abro a janela a custo
a velha teia onde o orvalho
mede o salto para o sol

a árvore mais fria que um muro
estrangula o desejo de cantar

pássaros em fuga não olham para trás

o dia não pensa em amanhecer
eu penso em não pensar mais em você

o quintal só acorda
quando os pássaros voltarem

acordar é nascer do sono
nascer não é nenhum sonho

nem comecei o mundo
hoje e esse cansaço
essa vontade
contrária a tudo
a todo
princípio
como um Deus

arrependido
de inventar
o riso      
o ódio     
a espuma
mas não o mar
tão pouco a boca
que

embora imensa
nunca abarca
tudo quanto
o desejo
pensa

(daí a invenção da mão
desajeitada e ansiosa
feito a boca 
que complementa)

um Deus que não atina que ignora
esse gesto – amanhecer
e não sabe se hoje vai dar praia
ou se vai chover

porque, sendo Deus, sabe
que não há
como saber



.

Paulo Vieira

.




sábado, 27 de setembro de 2014

sobre OVO DE OSGA, de AILSON BRAGA

                                                              

                      Ovo

Enquanto lia os contos deste Ovo de osga, segundo livro de Ailson Braga, me lembrei de uma cena do livro História do olho, de Georges Bataille. Aquela na qual Simone aprende a quebrar ovos de maneira erótica, como nos conta outra personagem, o seu amigo narrador: “A partir dessa época, Simone aprendeu a quebrar ovos com o cu. Para isso colocava a cabeça no assento de uma poltrona, as costas ao espaldar, as pernas dobradas na minha direção enquanto eu batia punheta para esporrar no seu rosto. Só então eu punha o ovo em cima do buraco: ela se deliciava a mexer com ele na rachadura profunda. No momento em que as nádegas quebravam o ovo, ela gozava...” Um exemplo luminoso de como o erotismo nasce no âmago das coisas isentas de sentimentos e nas escatologias que, no fundo, representam a natureza mais pura, sem peias. Enquanto, ao contrário do que dizem os moralistas, as obsessões, realizando-se, libertam o espírito.
Contudo, as personagens de Ailson não são como as Bataille, que encontram no esfacelamento e na loucura o roteiro das suas perversões. Mas o desejo que extravasa nos contos de Ovo de osga remete também ao sentido tempestuoso e tenso da vida que não prescinde dos inesgotáveis anseios da carne. Nestes contos, as personagens procuram um lugar mais ameno na vida, ainda que, frequentemente, seja por meio da rememoração. Afinal, a felicidade não parece estar sempre no passado, ou naquilo que dele nos resta como lembrança? As personagens de Ailson querem os impossíveis que constituem uma urgente felicidade. E, às vezes, humildemente, querem menos que isso.

Mas atender a sonhos não parece a tarefa do escritor nesses contos. Como o leitor poderá ver, Ailson está absorto na construção das imagens. Por isso, nas páginas dessas histórias há uma carga poética muito sentida. Em alguns casos, o autor nos oferece versos prontos, cheios de lirismo, no meio das tramas de sua prosa, como em: “O céu denuncia um carregamento clandestino de astros”, “o mato é uma mágica anônima da natureza”, “o sol colocava amarelos e laranjas pelas paredes”, “...no coração também levava formigas de fogo por Rafael” ou ainda no bonito haicai plantado no conto que dá nome ao livro, “uma chuva de folhas – confetes da natureza – saúda a passagem de um grilo”.
Mas não pretendo revelar muito para não estragar a surpresa desses contos, onde se vê um pai se afastar do filho, ou pior, abandoná-lo num convento. Onde meninos crescem, enquanto a cidade e a ilha seguem na sua rotina de ferro ou de água, de asfalto ou de rio, indiferentes a eles. Onde Benedito e Cátia correm (para onde?) contra o tempo e a solidão dos dias.  Onde “o gosto dourado dos camapus” revela e oculta o primeiro amor. E as “formigas de fogo” e as “folhas serenadas” atendem aos apelos do corpo sem que ninguém se dê conta da morte nem daquilo que os cristãos chamam pecado.
É assim que, nos contos deste Ovo de osga, Ailson Braga se entrega às obsessões da sua própria existência procurando entendê-las e também vivê-las ou revivê-las. Mas isso se dá de maneira paradoxal, pois ainda que um escritor pense basear-se no vivido a literatura faz outra coisa: transfigura o realizado e o irrealizado em algo intangível e premente, mas que, na leitura, se revela como se sempre estivesse ali, feito um “ovo de osga escondido atrás de um calendário pendurado na parede”.

Paulo Vieira,
Piracicaba, setembro, 2014.