Ovo
Enquanto
lia os contos deste Ovo de osga, segundo
livro de Ailson Braga, me lembrei de
uma cena do livro História do olho, de
Georges Bataille. Aquela na qual Simone aprende a quebrar ovos de maneira
erótica, como nos conta outra personagem, o seu amigo narrador: “A partir dessa
época, Simone aprendeu a quebrar ovos com o cu. Para isso colocava a cabeça no
assento de uma poltrona, as costas ao espaldar, as pernas dobradas na minha
direção enquanto eu batia punheta para esporrar no seu rosto. Só então eu punha
o ovo em cima do buraco: ela se deliciava a mexer com ele na rachadura
profunda. No momento em que as nádegas quebravam o ovo, ela gozava...” Um
exemplo luminoso de como o erotismo nasce no âmago das coisas isentas de
sentimentos e nas escatologias que, no fundo, representam a natureza mais pura,
sem peias. Enquanto, ao contrário do que dizem os moralistas, as obsessões, realizando-se,
libertam o espírito.
Contudo,
as personagens de Ailson não são como as Bataille, que encontram no
esfacelamento e na loucura o roteiro das suas perversões. Mas o desejo que
extravasa nos contos de Ovo de osga
remete também ao sentido tempestuoso e tenso da vida que não prescinde dos inesgotáveis
anseios da carne. Nestes contos, as personagens procuram um lugar mais ameno na
vida, ainda que, frequentemente, seja por meio da rememoração. Afinal, a
felicidade não parece estar sempre no passado, ou naquilo que dele nos resta
como lembrança? As personagens de Ailson querem os impossíveis que constituem
uma urgente felicidade. E, às vezes, humildemente, querem menos que isso.
Mas
atender a sonhos não parece a tarefa do escritor nesses contos. Como o leitor
poderá ver, Ailson está absorto na construção das imagens. Por isso, nas
páginas dessas histórias há uma carga poética muito sentida. Em alguns casos, o
autor nos oferece versos prontos, cheios de lirismo, no meio das tramas de sua
prosa, como em: “O céu denuncia um carregamento clandestino de astros”, “o mato
é uma mágica anônima da natureza”, “o sol colocava amarelos e laranjas pelas
paredes”, “...no coração também levava formigas de fogo por Rafael” ou ainda no
bonito haicai plantado no conto que dá nome ao livro, “uma chuva de folhas –
confetes da natureza – saúda a passagem de um grilo”.
Mas
não pretendo revelar muito para não estragar a surpresa desses contos, onde se
vê um pai se afastar do filho, ou pior, abandoná-lo num convento. Onde meninos
crescem, enquanto a cidade e a ilha seguem na sua rotina de ferro ou de água, de
asfalto ou de rio, indiferentes a eles. Onde Benedito e Cátia correm (para
onde?) contra o tempo e a solidão dos dias. Onde “o gosto dourado dos camapus” revela e
oculta o primeiro amor. E as “formigas de fogo” e as “folhas serenadas” atendem
aos apelos do corpo sem que ninguém se dê conta da morte nem daquilo que os
cristãos chamam pecado.
É
assim que, nos contos deste Ovo de osga, Ailson
Braga se entrega às obsessões da sua própria existência procurando entendê-las
e também vivê-las ou revivê-las. Mas isso se dá de maneira paradoxal, pois
ainda que um escritor pense basear-se no vivido a literatura faz outra coisa:
transfigura o realizado e o irrealizado em algo intangível e premente, mas que,
na leitura, se revela como se sempre estivesse ali, feito um “ovo de osga
escondido atrás de um calendário pendurado na parede”.
Paulo Vieira,
Piracicaba, setembro, 2014.