amanhecer
no quarto absorvo
ao menos um pouco
ao menos um pouco
as réstias da luz
que o dia produz
longe a noite movediça
agoniza e apaga
tudo
vermelhos
roxos
grandes lábios
e azuis
absorvo e sinto
ao menos um pouco
os desígnios da aurora
que ao pousar
nos devolve
distorcidas
luzes
cores
esmaecidas
desperto antes
da mimética manhã
luzir altiva
tenho abóbadas
insônia nas salivas
mas que fazer do medo
quando os fantasmas
se aposentam?
abro a janela a custo
a velha teia onde o orvalho
mede o salto para o sol
a árvore mais fria que um muro
estrangula o desejo de cantar
pássaros em fuga não olham para trás
o dia não pensa em amanhecer
eu penso em não pensar mais em você
o quintal só acorda
quando os pássaros voltarem
acordar é nascer do sono
nascer não é nenhum sonho
nem comecei o mundo
hoje e esse cansaço
essa vontade
contrária a tudo
a todo
princípio
como um Deus
arrependido
de inventar
o riso
o ódio
a espuma
mas não o mar
tão pouco a boca
que
embora imensa
nunca abarca
tudo quanto
o desejo
pensa
(daí a invenção da
mão
desajeitada e
ansiosa
feito a boca
que complementa)
que complementa)
um Deus que não atina que ignora
esse gesto – amanhecer
e não sabe se hoje vai dar praia
ou se vai chover
porque, sendo Deus, sabe
que não há
como saber
.
Paulo Vieira
.
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