quarta-feira, 25 de setembro de 2013
FEBRE
Alexandre CARRASCO
A febre do rato
Brasil, 2011, 110 min, 35mm, P&B, dolby digital
Direção: Cláudio Assis
Produção: Claudio Assis, Julia Moraes e Marcello Ludwig Maia
Produção executiva: Marcello Ludwig Maia
Roteiro: Hilton Lacerda
Fotografia: Walter Carvalho
Montagem: Karen Harley
Direção de arte: Renata Pinheiro
Trilha sonora: Jorge du Peixe
Produtoras: BelaVista Cinema e República Pureza
Distribuição: Imovision
Elenco:
Irandhir Santos.................................. Zizo
Nanda Costa...................................... Eneida
Matheus Nachtergaele....................... Pazinho
Juliano Cazarré.................................. Boca Mole
Tânia Granussi................................... Vanessa
Conceição Camarotti.......................... Anja
Maria Gladys...................................... Stellamaris
Ângela Leal........................................ Dona Marieta
Mariana Nunes................................... Rosângela
Vitor Araújo....................................... Oncinha
Hugo Gila........................................... Bira
A impressão que se tem é que não são poucas as coisas a serem ditas sobre A febre do rato (2012), de Cláudio Assis.
Começo pela que me parece mais óbvia. Tomando a já notável produção de Cláudio Assis, diria, de chofre, que há um salto considerável. O último filme tem outra estatura, tanto em relação a Amarelo manga (longa de 2002) quanto a Baixio de bestas (longa de 2006). Entre um e outro dessa primeira leva, e sem querer fazer arqueologia involuntária, há algo como uma irregularidade própria de pesquisa, alternando o momento mais feliz, formalmente, de Amarelo manga, talvez mais tímido nas pretensões, e daí formalmente mais conciso e resolvido, com certo excesso retórico e formal em teste, por assim dizer, de Baixio de bestas. É evidente que há de parecer falso reduzir esse percurso a problemas de economia formal, supondo que haja em A febre do rato uma excelência formal sem precedentes. Há, igualmente e sobretudo, um investimento de conteúdo do primeiro para o segundo filme, Baixio de bestas sendo mais ousado do ponto de vista da matéria tratada do que Amarelo manga. Assim, para além de um acúmulo formal por experimentação, há também um investimento mais amplo acerca da matéria de que trata o filme, daquilo que se filma, sobre o que se filma e o que pode e o que deve ser filmado, sobre o que falaremos mais na sequência. Mas o que cabe chamar a atenção é que, olhando retrospectivamente, Cláudio Assis parece ter, e eu diria que certamente tem, um projeto artístico-estético do maior interesse e, acima de tudo, um compromisso ético com tal projeto. Cláudio Assis não se dá ao luxo de baratear suas ideias fixas.
Se marcamos essa diferença entre os dois primeiros filmes também foi para poder melhor notar o que entre eles permanece e continua: um mesmo olhar da máquina-cinema, uma continuidade no modo de apropriação e de produção da imagem, importante e decisiva. Podemos tomar esse olhar de Cláudio Assis também como ponto de partida para A febre do rato. Há lá também a aproximação e a textura de documentário utilizadas com a deliberada intenção de se aproximar mais e mais de um objeto que precisa ser visto, de encontrar um certo ângulo de visão e de cobertura adequado – o tal foco –, tudo isso diante de um objeto cuja característica específica parece ser a de que nunca é filmado. Um objeto inédito. Alguém poderia perguntar: por que nunca filmado? A resposta poderia dar muitas voltas em torno de Deus e nossa época. Mas vamos resumir: porque o gênero “novela das oito” ou “série cabeça da tv aberta” não comporta os objetos de predileção de Cláudio Assis. Ele escapa dessas fronteiras específicas. Há um pressuposto no cinema de Cláudio Assis que é difícil não compartilhar; eu diria, arriscando, que é mesmo a sua profissão de fé: a imagem produzida em escala industrial, no Brasil, bloqueia a visão, impede que se veja. É uma imagem opaca, sem brilho, repetitiva. Essa imagem em escala industrial é, por natureza e destino, hegemônica. Não haveria de ser diferente, aliás. O que ela não vê é o que justamente o que Cláudio Assis quer mostrar.
Assim, os momentos desses filmes em que a câmera captura o mundo tal como natureza morta – há um esforço de reconhecer a imanência de certas paisagens, de certos climas, mesmo de certos movimentos, isto é, reconhecer que, de fato, eles existem –, o momento propriamente documentado – corredor de pensão, olhar incerto por um mercado público, o ofício de cortar e destrinchar a carne no açougue, (tomo como exemplo recortes de Amarelo manga); e, igualmente, o cortejo fúnebre ao fundo, e o passeio da câmera pelas vielas estreitas da favela, em A febre do rato – prepara o momento propriamente dramático, levando a crer em uma espécie de pedagogia do olhar construída pela passagem de um polo a outro: amor, carne, gênero, sexo, corpo, tudo isso, no ápice do confronto dramático, irá produzir outra dramaturgia, outra sintaxe gestual, outra posição do corpo e do desejo. Em suma, tudo não apenas pode ser visto, mas, principalmente, deve ser filmado e, além disso, reconhecido como tal.
Claro que essa descrição feita em abstrato muito pouco coisa explicaria do impacto imagético dos filmes de Cláudio Assis. Restaria acompanhar a ação propriamente dita. Mas essa forma de tomar e dar corpo à imagem, tomando o termo em sentido estrito, é de onde parte a câmera stylo de Cláudio Assis.
Se esse parece ser o fim a que se destina o olhar de Cláudio Assis, não escapamos da consequência: e aí cabe todo outro trabalho do imaginário. O que se imagina quando se vê outra paisagem? Pois em cinema não se trata apenas do que filmar, mas do que se pode imaginar a partir do que foi filmado. Essa máxima Cláudio Assis sabe, bem sabida. Daí uma implicação que não é gratuita: paradoxalmente, o esforço de Cláudio Assis em documentar um certo objeto, uma certa textura e clima está diretamente ligado à potência de imaginar inscrita no dito objeto. Ou por outra (e isso é elevado a muitas potências em A febre do rato): esse substrato documentado é o que dá potencia ficcional aos filmes de Cláudio Assis. Logo, o cuidado em filmar, diria, meticulosamente (mas essa não parece ser a boa palavra), em recuperar a densidade aveludada do nosso prosaísmo, já massacrado e envernizado pela televisão, é um problema não exatamente de realidade, mas de ficção.
A essa dificuldade formal, filmar o que não aparece, em situação normal de temperatura e pressão, seguir-se-ia facilmente a caricatura de péssimo gosto, afeita ao pseudo-humor tão em voga no Brasil, a maneira mais eficaz e consagrada de contornar o problema. Aqui, naturalmente, não cabe essa solução. Aqui, a aproximação se dá pela via de uma “câmera artesanal”, para não dizer “câmera artesanato”, e tem, também, um propósito asséptico: limpar o olhar desses mil anos de ditadura, da intensiva colonização televisiva do imaginário. Talvez mais do que em qualquer outro lugar, a televisão, no Brasil, tem o seríssimo compromisso de colonizar o imaginário. Não seria demais dizer que Cláudio Assis arma um guerrilha contra essa sintaxe, decoro, figurino, interpretação e gestual da novela das oito, o nosso senso comum imagético.
Fico tentado a abrir um parênteses largo (nas consequências): se no Brasil a última ditadura militar ganhou – reconheçamos, nós que perdemos – ao constituir, senão uma maioria social, pelo menos algo próximo disso – basta ter o desagradável prazer de ler as páginas de opinião dos jornais de grande circulação para se fazer essa constatação óbvia –, o efeito disso, no imaginário, passa pela hegemonia formal da tal “novelas das oito” (hoje parece que é às nove). O tal “padrão bolo de qualidade” é cooptação e sujeição do imaginário. Sem mais nem menos. Raríssimo é o cinema local que não é refém formal dessa narrativa.
Mas aqui tudo tem de ser diferente. Ocorre que essa disposição não é voluntarista no mal sentido do termo. É, sim, voluntarismo de artista, pesquisado, que enfrenta dilemas formais e parece, de fato, não se resignar.
Recapitulando: sendo verdade a fórmula, aquilo que se vê não se filma (ao menos facilmente); um dos problemas formais que enfrenta Cláudio Assis é justamente filmar aquilo que ele vê. E, para esclarecer, dando mais uma volta no fuso, não se trata de filmar essa “miséria tão brasileira”, essa “absurda injustiça” e toda série de lugares comuns (muitos, naturalmente, verdadeiros, mas nem por isso críticos) da boa consciência de classe média brasileira (ultimamente, um pouco em falta): porque isso também já foi reduzido a clichê e esvaziado de seu conteúdo pela produção em massa de nossos lugares comuns, inclusive. Há favelas cenográficas (cenográficas e reais) para todos os gostos, de filme de “bandido e mocinho” até “romeu e julieta do morro”. Não se trata disso. O projeto de Cláudio Assis passa por outra via, mais difícil. Diria, abusando bastante de uma língua estranha, que esse “popular porta bandeira e estandarte de ouro” não está posto no cinema de Cláudio Assis, isto é, não é tomado à superfície, nem como slogan nem como propaganda para captação de recursos públicos. Ele, o popular, permanece pressuposto: é o invisível daquilo que ele põe visível na tela. Há uma evidente pesquisa pelo popular em seu cinema, muito presente também em A febre do rato. Mas esse popular é menos uma figuração e um figurino e mais uma espécie de energia fora da ordem, vigorosa e paradoxalmente estéril. Socorro-me do texto canônico de Antônio Candido: essa pulsão na desordem e seu arremate, a tal “dialética da malandragem”, mediação e inteligência popular por excelência, de quem está terrível e violentamente abandonado à própria sorte (sem ordem social que o integre, cabe dizer), e, além do mais, deve se submeter ao imperativo de viver e viver, normalmente, sob sujeições de toda ordem; esse esforço para “separar o certo do errado” em condições muitíssimo adversas parece ser a pulsão original de A febre do rato. De minha parte, que se diga, sem nenhum elogio (não se trata, e disso nunca se tratou) a esse charme dialético tão nosso: estamos falando de esgoto a céu aberto, parede de madeirite e a impressionante produção de uma gigantesca mancha urbana insalubre, violenta, superpovoada e, sob muitos aspectos, regressiva, em todas nossas regiões metropolitanas, tudo isso, bem claro, engatado também a reproduzir o nosso padrão de ordem para os boas vidas dos trópicos.
Ocorre que há nessa pulsão-inteligência, exigida a “dar jeitos” de toda espécie, uma esperança e uma aposta. Esse é o pressuposto do filme, e, abusando novamente, eu diria que é sua primeira matéria, seu material mais bruto.
Uma “certa esperança” muito específica: que essa energia anárquica (porque fora da ordem) possa reinventar a roda, e a vida.
Digamos que este é o nosso ponto de partida, que este é o ponto de partida de A febre do rato.
O filme, partindo desses pressupostos, mostra até onde pode ir a imaginação desse pensamento fora da ordem; melhor, o que podemos imaginar quando nos pomos a ver a força, o melhor ângulo, dessa desordem.
Assim, o seu porta-voz e protagonista maior não poderia ser outro senão o Poeta, Zito. Mas um poeta de periferia, sem lirismo comportado de funcionário público, vale dizer, cujo anacronismo (em ser poeta e mesmo aquele da sua prensa antiquada a fazer pequenos cartazes e panfletos, e que abre o filme num compasso de suspense, máquina-símbolo do filme e máquina-do-mundo de Zito) é tal que lhe dá uma inesperada atualidade. Nessa desordem (já que não se trata de qualquer desordem), as interversões estão todas disponíveis às mais inesperadas improvisações e mudanças bruscas de sentido – “precisamos de um não que seja um sim”, dirá Zito na última sequência do filme, antológica. Espírito de contradição, não tão organizado assim (talvez, deliberadamente, nada organizado), nosso poeta leva a dialética a outra margem do ocidente. A ele, o poeta, não cabe nenhuma “interlocução” “poética”. Ele não é membro de nenhum círculo literário ou coisa que o valha. Está imediatamente à margem, como todos, à paisagem, inclusive. Poeta marginal, fora da ordem, mas no sentido radicalmente prosaico da informalidade brasileira. Em contato permanente (e intenso, já que poeta) com o prosaico, ele tira daí um contato permanente com a vida. Assim, a importância fílmica de captar esse prosaico, o cuidado exemplar de Cláudio Assis em filmar, simplesmente. Cabe lembrar que a fotografia de Walter Carvalho é, como de hábito, impecável, bem como parece haver uma equipe e tanto, um notável trabalho coletivo, que não deve passar desapercebido do espectador. Retomando, a poesia de Zito é modo de vida e de ser. Assim, vida e poesia quase coincidem, sem afetação ou cerimônia. Essa é a primeira chave para o anarquismo de doutrina que o filme professa: pela pena desse poeta, a vida fora de ordem é salva, retorna a uma espécie de poesia espontânea, debochada, moderna, anárquica e despudorada. O poeta é o mais estranho e o mais natural. E não é por outra razão que, perfazendo uma coincidência entre vida, anarquia e poesia, ele conduz o filme. E por ele passa o casal Pazito e Vanessa, espelho e reflexo do poeta. Ele celebra o casal, faz questão disso, como poucos e com graça. É um casal ultramoderno: um homem e uma transexual. E sendo sabido e celebrado (o poema da primeira reconciliação, no primeiro terço do filme, homenagem de Zito ao casal, “Valetes a varejo”, “ das espadas que são nós, que ser vertem de maneira tão intensa”, conclui, “porque afoitos se completam”; enfim, “espada contra espada, espada com espada”) é estranhamente natural. Estranhamente porque não há uma questão de gênero posta. Seria fácil dizer que isso passa ao largo e é esquecido pelo filme, mas não se trata bem disso. A questão de gênero é incorporada pela questão mais geral da anarquia da vida. E, à desordem de gênero, toma lugar uma nova ordem: porque afoitos se completam. E o que chamamos naturalidade vem da não necessidade de se pôr essa questão, reposta em forma pela poesia. Não há engano, a maneira de uma Madame Butterfly, por exemplo. Ninguém é ingênuo (a dada altura Pazito fala a Vanessa, você “é o homem de minha vida”), e não há drama, no sentido moral e pequeno burguês. O mecanismo da narrativa não se permite a isso: a desordem reinventa outra ordem, acima dos gêneros e seus limites. Sem caricatura barata. O filme já está na vida, sem recursos a terceiras ou quartas explicações. Essas considerações valem também porque o casal Vanessa e Pazito tem uma função narrativa chave, como adiantamos. Parece-me que a estranha naturalidade do amor e da ligação de Pazito e Vanessa, essa forma tão precisa de filmar o amor segunda a vida, não importando a ordem, é o espelho do poeta e vice-versa. São como que um o duplo do outro: da vida à sua enunciação (matéria em desordem do poeta), da enunciação à vida, poesia. É sintomático que uma das primeiras sequências do filme comece com uma briga de Pazito e Vanessa: como se a briga mostrasse o quanto a ligação de ambos suporta o teste de uma crise. Essa primeira sequencia, diria, é primorosa. Há todos os elementos da briga amorosa. A culpa, o medo da perda, a urgência, o amor e por fim o perdão. Esse arco narrativo se fecha com o poema de Zito sobre o amor entre iguais. A partir daí não se escapa mais da A febre do rato, é febre de malária, sezão, não te abandona nunca. Uma certa experiência de loucura anárquica e debochada e, simultaneamente, estética no melhor sentido do termo toma quem se arrisca a assistir ao filme.
O que vem depois são dois momentos específicos, intercalados e não contínuos, dois momentos da desordem, que fazem fundo ao amor do poeta para com Eneida, o fio que toma o filme depois de seu primeiro terço: as cenas no galpão de uma comunidade hippie/traficante – há uma transa coletiva extremamente bem filmada, descompromissada, anárquica, debochada, talvez eco de um clássico brasileiro da pornografia, Oh Rebuceteio, de Claudio Cunha – e as transas do poeta na caixa d’água, com suas vizinhas/amigas. Não vou entrar nos detalhes. Diria apenas que, primeiro, há um notável trabalho de atores de Cláudio Assis e de toda sua equipe. Segundo, há raríssimos diretores, hoje, no Brasil, capazes de filmar um corpo e uma pessoa como Cláudio Assis. Talvez só se encontre experiências análogas de se filmar um corpo, uma transa, uma aproximação, na pornochanchada (nesse caso, a exaustão leva a um aprimoramento) e nos filmes do antigo circuito da boca do lixo, em São Paulo. E, ao mesmo tempo, que delicadeza. Não há uma única imagem que qualificaria de vulgar. Tudo está mais próximo do lírico do que do propriamente lascivo ou, ainda, do pornográfico, ainda que o lirismo sempre se permita um desvão de permissividade e mesmo de pornografia (“Oh! sejamos pornográficos , (docemente pornográficos). Por que seremos mais castos, Que o nosso avô português?”, Em face dos últimos acontecimentos, CDA, - e, completo, como não ser?).
Salto um tanto do miolo do filme para tratar imediatamente de seu final (o terço final).
Há uma dupla sequência final em que o esforço de opor ao sentido da ordem a força de um desordem viva, não conformista, inventada, dá muito o que pensar.
Começa com o momento em que seguem em préstito carnavalesco (pelo menos, na forma) todos – Zito, as vizinhas, Vanessa e Pazito, o grupo hippie e Eneida, para a parada de Sete de Setembro. Zito anuncia: “este ano não vamos para a cadeia, vamos para o hospício”. Todos pretendem desfilar no Sete de Setembro, portando, fazer fundo de desordem à nossa cara Ordem e Progresso. Essa participação incidental do grupo na parada significa aqui, claro, anarquizar, desafiar a ordem. E que imagem de ordem aparece diante de nós ao nos deparamos com a parada militar do Sete de Setembro. Soldados alinhados, contando os passos. Há ecos imediatos de outra parada: a de 31 de março de 1964, em que os tanques, na Avenida Atlântica, paravam no sinal vermelho.
Naturalmente que todos são expulsos da parada cívica. E vão para a orla do Recife, à beira do Capiberibe, ouvir o poeta. E lá, um dos melhores textos do cinema nacional, desde há muito. Começa com um discurso que dá em uma máxima à la Quincas Borba: abaixo a reciclagem, viva a lapidagem (“temos que pedir mais e oferecer menos” – seguindo um silogismo bem machadiano, que começa com o lixo, que lixo invariavelmente lembra pobre, porque o pobre vive naturalmente (exclusivamente) de reciclagem, chafurdando no lixo. Ninguém lembra de pobre quando descobre uma mina de diamante. A conclusão não pode ser outra: abaixo a reciclagem, viva a lapidagem – ou por outra, ao “vencedor, as batatas”.). Até que, na sequência desse comício selvagem, debochado, aparece Eneida. E há uma espécie de pausa mínima e o que segue é um cúmulo de lirismo e beleza, uma continuidade inesperada entre o político e o lírico. Poema belíssimo é dito a Eneida:
para as coisas que não se realizam por excesso; para as coisas que não são por não terem cabimento.
Escrevi meu nome em um sacrário que se encontra ao lado da geladeira e próximo aos pequenos frascos de remédio, junto a isso tem uma estante e sob essa estrutura um espelho que reflete o rosto do homem com quem cotidianamente tu compartilhas o dia e faz coisas diferentes (...)
o homem comum, o mesmo do espelho, não acreditava muito no pensamento e começou a listar (...)
o homem comum, o mesmo do espelho, destratou seus sentimentos como que pedindo benção a deus e ao diabo para driblar suas culpas e entrou em casa.
Deixou a arrogância lá fora, descansando, para beijar a juventude que dormia no sofá. Beijou (...) e sua mão entrou tanto, tanto, foi tão longe que alcançou o coração do sonho; e ali decidiu que queria entrar no sonho por inteiro.
Mas ela acordou e disse que a organização é a maneira mais privilegiada de ser medíocre.
O homem comum concordou, enquanto retirava seu braço ainda com o cheiro do sonho.
***
Ao longo desse texto, o poeta no teto de sua Variant caindo aos pedaços, em uma espécie de ímpeto coletivo e lírico se volta ao corpo, pede, com ares de profeta, para todos tirarem a roupa, enquanto vai tirando a sua. É uma espécie de retorno ao fundamento material da ordem e da desordem, o corpo visto e visível de cada um. Quem sabe, um começo do zero. Do zero ao infinito. E todos começam a tirar a roupa em um final filmado de maneira memorável, câmera no ombro. E tanto mais esse elã lírico cresce e se realiza, mas riscos se corre. E não seria diferente. Por fim, o retorno da ordem: a polícia aparece, espanca todos brutalmente, como de hábito, e o poeta é jogado morto ou quase, no rio, o mesmo rio de João Cabral de Melo Neto. Do rio nunca mais volta. O poeta sucumbe a sua mais aguda febre do rato, à loucuras das loucuras: viver.
E vi todas as mortes
em que esta gente vivia:
vi a morte por crime,
pingando a hora da vigia;
a morte por desastre,
com seus gumes tão precisos,
como um braço se corta,
cortar bem rente muita vida;
via morte por febre,
precedida de seu assovio,
consumir toda a carne
com um fogo que por dentro é frio.
Ali não é a morte
de planta que seca, ou de rio:
é morte que apodrece,
ali natural, que visto.
(“O rio”, João Cabral de Mello Neto)
Há que se fazer uma última pausa. Não sei se seria o caso de elogios a Cláudio Assis, à equipe de A febre do rato, à atuação pungente de Irandhir Santos, ao próprio filme. Penso que A febre do rato dispensa essas gentilezas. O que espero, enfim, é que sobreviva nas latas, cheias de rolos de película de trinta e cinco milímetro de acetado e gelatina de prata, sob a etiqueta A febre do rato, uma esperança máxima, verdade das verdades, o nosso sumo direito de errar, que entre todos, é o cúmulo do elogio que se pode fazer à imaginação – só a imaginação erra, mas sem ela não há pensamento: direito de errar, para dias melhores que, quem sabe, virão.
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Um comentário:
Muito bom! Vieiranembeira....
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