pra ter uma ideia dos show, antes de ler o texto, assista aqui OSWALD CANIBAL
by ADERSON ARAÚJO
A
arma do artista é sua arte. É um clichê tremendo tremendamente verdadeiro. E
quando se fala em arte é força, habilidade, talento e pensamento unidos para
transformação de si e do que está em volta. Não importa se para tal seja
preciso um produto, esforço hercúleo, uma pausa na produção, um punho
levantado, uma língua afiada ou se tornar uma presença incômoda por causa
daquilo que se faz. Henry Burnett é essa presença incômoda de armas invisíveis
na mão. É o visitante que ri na hora do silêncio e o que silencia ao ser
instigado a dizer o que se espera que diga. É o nativo virado no mundo que
encontrou na música a autoridade para falar do seu lugar e, ao mesmo tempo, de
si. Ele chega na festa da música paraense como quem entra em um debate sobre
filosofia, mesmo que os donos digam "música é pra dançar", sacudindo
as pedrinhas de gelo nos seus copos com Green Label. No DVD "Por uns
tempos", resumo de 20 anos de carreira de Burnett apresentado em show excelente
no último dia 15 no Sesc Boulevard, ele lança mão de recursos dançantes também.
Não com os sincopados e merengueiros eleitos como pérolas de exportação da
cultura paraense. Mas com a porrada do rock como base de resistência, como em
"Terra firme", relato sem retoques, culpas ou mistificações da lógica
de vida das baixadas belenenses, e "Oswald Canibal", bela homenagem a
Bené Nunes e o moderno Oswald de Andrade. Com uma banda entrosada e ciente,
tendo o grande Renato Torres como auxílio luxuoso na guitarra e na crítica à
cena local, Burnett diz com suas adagas sonoras que música é pra dançar. E para
pensar e enxergar outros pontos de vistas. Por que não? Num cenário angustiante
em que fazer música virou uma maratona para captar recursos em editais e/ou
chegar ao Sul Maravilha abençoado por produtores caça-níqueis com uma visão
deturpada e mal concebida sobre o que é ser paraense, a resistência ao status
quo vem de São São José dos Campos, em São Paulo, falsamente estrangeira, para
fazer o contraponto. Henry Burnett repensa Belém e seus movimentos de
encolhimento e expansão na produção de cultura questionando os cânones e as
relações de poder intrínsecas ao pensamento hegemônico. E se há quem diga que é
mais fácil pensar de longe, Burnett diz delicadamente em "Belém de passagem",
parceria com Paulo Vieira, que "onde quer que eu vá, a taba também
vai." Não se coloca como um exilado a olhar de fora, mas um belenense a
sentir a cidade por dentro, a carregar a cidade por dentro, com um trabalho de
sofisticação universal com similaridades mentais com Caetano Veloso, Tom Zé,
Walter Freitas, Edir Gaia e, para misturar mais ainda, com a Vanguarda Paulista
e Chico Sciense. Mesmo quando "Por uns tempos" traz canções
"Comum acordo", de uma safra mais antiga de Burnett, há ali uma
alfinetada no comportamento, nas mentalidades, na maneira de se enquadrar com
quem detém a caneta, embora a música não tenha sido feita para esse fim. É
nesse momento que o show ganha contornos definitivos de provocação a pensar
sobre o que está acontecendo com a música paraense, com Belém, com todos nós.
"Espero com sinceridade ver tua cara num Terruá da cidade". O ápice é
com o recado direto em "Feliz Natal, anormal", que vai estar no
próximo disco e instiga uma reflexão sobre "autenticidade, comunidade,
povo" e tudo que se tem feito para soterrar o que passou para sustentar a
ideia de novo, de recriação, como se a cultura fosse estanque e não um contínuo
de acumulações. (No vídeo vocês conferem a letra e papo reto dado pelo artista)
A plateia do dia 15 compareceu satisfatoriamente ao auditório do Sesc
Boulevard, mas o show de Burnett deveria ser um evento público maior, em campo
aberto, para quem faz e gosta de cultura no Pará. Uma celebração que, se por um
lado, não cabe em ufanismos baratos, por outro, não há como negar que é mais
uma das refinadas e autênticas formas de fazer música e arte por essas bandas
do País. Senão por uma voz que hoje já não reside debaixo do sol claudicante de
Belém, mas quem nunca conseguiu se apartar dele por onde passou e armou acampamento,
em qualquer ponto do mundo. Dia 30 de agosto o show será reapresentado, no Sesc
Boulevard, às 19h. Não gosto da expressão, mas é. Imperdível. Se fosse vocês,
eu iria.
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