Sabe-se que é comum no Brasil o desenvolvimento ganglionar de quase tudo, inclusive do modernismo: os ventos da renovação submetem-se à distância geográfica. Basta observar as datas de fundação das revistas literárias da época, a partir de um epicentro entre Rio e São Paulo, sem esquecer o Centro, o Sul e o Nordeste. As datas indicam como o modernismo vai-se alastrando, quase que por ondas de choque. Em São Paulo há logo Klaxon (1922), lançada pelo núcleo puro e duro três meses depois da Semana de Arte Moderna, revista que pode ser considerada como marco zero. Outras viriam a seguir: no Rio, Estética (1924); no Rio Grande do Sul, Madrugada (1925); em Minas, A Revista (1925) e Verde (1927); no Nordeste, Mauriceia (1923) no Recife e Arco e Flexa (1928) na Bahia, a precocidade do Recife devendo-se à inoculação pelos militantes paulistas desde 1922.
Cada uma trazia seu manifesto. Entretanto, há casos de manifestos sem revista, como oManifesto de Anta, ou Nheengaçu Verde-Amarelo (1929), de São Paulo, que saiu em jornal e engendraria o Verdeamarelismo, cisma da ala mais à direita, seduzida pela sereia do integralismo. Mas mesmo o Pau Brasil de Oswald de Andrade (1924), mais conhecido como prefácio a seu livro de poesia de mesmo título, também foi manifesto sem revista. Não confundir com os dois números da Revista de Antropofagia, o primeiro estampando talvez o mais famoso de todos os manifestos modernistas, com ou sem revista, o Manifesto Antropófago.
Esta rápida súmula dos desdobramentos iniciais da renovação ajuda a definir melhor as raízes do grupo paraense. Pois é mais um caso de manifesto sem revista que assinala o advento do modernismo em Belém. Se desde 1923 já havia a revista Belém Novo, todavia ela não era modernista, apenas publicando esporadicamente alguma coisa relacionada a essas novidades. Assim, o marco inicial foi o manifesto Flamin’Assu (1927), redigido por Abguar Bastos e publicado em jornal. O "bolsão cultural", embora remontando a uma boa tradição local, seria assim fruto do modernismo, mesmo que tardio.
Então, quando uma nova geração surgiu, essa que estamos chamando de "grupo de Belém", as bases já estavam assentadas por aquilo que Antonio Candido chamou de rotinização do modernismo.
Rememorar o grupo implica lembrar as figuras que o constituíram, as iniciativas a que se dedicaram e as obras que criaram. No bojo dessa constelação, na literatura sobressaem logo o crítico Benedito Nunes, os poetas Mário Faustino e Max Martins, e o ficcionista Haroldo Maranhão. Há que destacar o papel relevante de Maria Sylvia Nunes, professora de música na universidade, que atuou num grupo de estudos da ópera por todos esses anos, vindo a desembocar na recente ressurreição da ópera amazônica após longo hiato. Muitos mais, inclusive estrangeiros, viriam agregar-se à constelação com o passar do tempo.
Benedito Nunes na crítica e na poesia o piauiense Mário Faustino, cedo desaparecido, logo adquiririam repercussão nacional. Deste último, a posição estratégica enquanto editor do influente Caderno B do Jornal do Brasil, no Rio, transcenderia a poesia. Divulgaria a tradução e a crítica estrangeira, bem como os concretistas, para os quais a folha se tornou praticamente um órgão oficial. Autores paraenses frequentariam essas páginas.
A geração seguinte forneceria continuadores também ilustres. O poeta Age de Carvalho seria cúmplice de Max Martins, ao ponto de comporem um livro juntos. Lília Silvestre Chaves, professora da universidade, sobrinha e orientanda de Benedito, além de poesia escreveu uma biografia de Mário Faustino em seu doutorado, e é tradutora de St. John-Perse, sobre quem versou seu mestrado. Nosso crítico sempre incentivou, ajudou a publicar, estudou e produziu textos a respeito dos conterrâneos e do embasamento autóctone, tal como consta do livro póstumo sobre a cultura do Pará que colige meio século de suas intervenções. Infatigável na animação desses intelectuais e artistas, presenteava os livros deles a amigos paulistas e cariocas, que nem sabiam das publicações.
Ele próprio era sobrinho de outro ilustre intelectual, o médico Carlos Alberto Nunes, nascido no Maranhão, que passou a vida fazendo traduções clássicas, como as da Ilíada e da Odisseia, afora o teatro completo de Shakespeare. Não era raro haver intelectuais de província, cultíssimos, geralmente bacharéis em Direito ou médicos, uma espécie hoje desaparecida. Guimarães Rosa foi um deles, até projetar-se extramuros na diplomacia. Alguns trocariam uma província por outra, como esse tradutor, que passaria quase toda a vida em Sorocaba. Tempos depois, Benedito organizaria a reedição paraense dos Diálogosde Platão, traduzidos por seu tio, em 18 volumes. O exemplo lembra outro maranhense, Odorico Mendes, que fez traduções prestigiadíssimas de Homero e de Virgílio. Beneméritos como esses executavam trabalhos de Hércules, devotando-se a vida inteira, com escassa retribuição, a algo que não dava dinheiro nem celebridade; mas prestavam um serviço inestimável ao saber.
Professor de filosofia cuja dupla lealdade se estendeu à literatura, nosso autor escreveu vários e excelentes livros nas duas especialidades; mas é fácil apontar entre suas preferências Clarice Lispector e Guimarães Rosa. Desde o começo, identificou-se com esses ficcionistas maiores, seus contemporâneos e, como ele, da geração seguinte aos modernistas. Passaria a vida às voltas com esses dois, em textos definitivos e dos melhores que se podem encontrar. A formação conceitual e abstrata conferiu-lhe uma voz única: tamanha erudição, aliada a tanta sensibilidade, não é algo comum.
Quanto aos escritos filosóficos, nos últimos anos temos tido a sorte de contar com as afinidades eletivas de Victor Sales Pinheiro, discípulo dedicado e perito nos trabalhos do mestre, que vem preparando a edição da obra completa. Saíram recentemente dois volumes nessa vertente, Ensaios Filosóficos e Heidegger. Afora o alemão, os gregos estavam a todo momento nas cogitações de nosso autor.
Na vertente literária, o livro agora vindo à luz, A Rosa o Que É de Rosa (Difel), dá uma ideia da alta qualidade dos resultados. Reunindo tudo o que o autor escreveu sobre o prosador mineiro, incorpora o incontornável O Dorso do Tigre - no qual, entre tantas joias, se destaca o ensaio sobre Cara-de-Bronze. Nessa estreia rosiana já se divisa um crítico maior, à altura de seu objeto. Benedito gostava de contar que o amigo Haroldo Maranhão troçara do título por soar forasteiro, sugerindo que, para dar exemplo de brasilidade, fosse trocado por As Costas da Onça. Já nas obras inaugurais nosso autor demonstra as duas grandes linhagens a que sua crítica literária pertencia, ele, professor de filosofia: Heidegger e a estilística alemã, principalmente clássicos como Auerbach e Curtius. O diálogo com eles aparecia onde menos se esperava, como quando aponta certeiramente topoi da tradição ocidental, caso da velha-moça que vai encontrar em A Estória de Lélio e Lina, de Corpo de Baile. O organizador-editor anuncia para breve, após Guimarães Rosa, a consolidação de suas reflexões sobre Clarice. A Difel lançará ainda o inédito Fernando Pessoa: Poeta Metafísico.
Escrevia maravilhosamente sobre poesia. Basta lembrar a vasta produção sobre João Cabral de Melo Neto, outro contemporâneo seu igualmente da geração que se seguiu à dos modernistas. Tradutor de St. John Perse ele mesmo, também tem vários ensaios sobre outros poetas. Entre tantos, destaco um notável texto sobre Rilke que preparou a meu pedido para um curso de literatura universal na Biblioteca Mário de Andrade. Ponto alto do curso, ao encerrar a conferência (iniciada pelas palavras: "Rilke é o poeta da gnose") seria ovacionado durante dez minutos.
À reunião dos textos rosianos soma-se o outro dos dois livros que acabam de sair, O Tempo da Narrativa (Loyola), pequeno tratado teórico e didático, publicado sem maiores cerimônias. Concebido com o habitual rigor do erudito, passa em revista as várias modalidades das teorias sobre o tempo na prosa, sem esquecer a fenomenologia e o estruturalismo. Além de sua utilidade, serve para fazer-nos lembrar as múltiplas facetas da obra desse agitador cultural, que nunca recusava redigir prefácios nem participar de bancas, de júris, de congressos, de cursos ou de livros coletivos. Sua escrita límpida leva-nos à conclusão de que não é por ser heideggeriano que deveria cortejar o obscuro. E suas inúmeras iniciativas no campo da cultura instauraram linhagens em sua terra, tanto em disciplinas que criou para a universidade, quanto, menos conhecida talvez, a trupe de teatro amador que promoveu juntamente com Maria Sylvia Nunes e resultaria na Escola de Teatro. Cabe-lhe a honra de ter sido um dos fundadores da Faculdade de Filosofia. Mesmo em sua terra, Benedito Nunes tem tudo de um herói civilizador.
WALNICE NOGUEIRA GALVÃO É PROFESSORA EMÉRITA DA FFLCH-USP
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